Os textos publicados não terão a ordem dos livros nem tampouco dos dicionários. Virão da desordem da vida, do improviso das águas, das impressões sobre qualquer coisa. Tudo que carregue o mistério de ser letra, verso, prosa. A única lógica será não ter lógica nenhuma. Pode ser que sirva, pode ser que exista, pode ser que dê. Quem sabe?
domingo, 16 de maio de 2010
Lavoura Arcaica, Raduan Nassar
Livro de discursos inflamados, numa fala poética, num dizer gritado. Lavoura Arcaica surpreende por vários motivos. Tem nele a musicalidade que se encontra na poesia, o que já bastaria para ser maravilhoso. Mas o livro vai além da forma trabalhada e nos traz um conteúdo atemporal, que caberia muito bem em qualquer cultura onde tenha a família e suas tradições como principal pedestal da sociedade.
Há uma tradição familiar forte, talhada nos móveis da casa antiga que serve de tempo e espaço ao mesmo tempo. É ali que se desenrola o drama daquela família. No seio dela, entre os carinhos da mãe e os sermões do pai, cresce o filho que trará na alma o anseio de ser livre. Daí a tensão da narrativa: a liberdade que se contrapões à tradição secular.
Percebe-se que André , o filho que carrega em si a missão de questionar a figura paterna e, consequentemente o sistema organizacional da família, possui uma sensorialidade exacerbada, cultivada nos afagos da mãe, no contato com a terra, nos perfumes das flores, no sumo das frutas. O problema se inicia quando as sensações de prazer de André se transformam em desejos que, por sua vez, não encontram espaço para serem saciados na casa antiga.
Um livro para ler e reler.
Sobre o autor
Raduan Nassar é paulista de Pindorama, onde passou a infância. Adolescente, veio com a família para São Paulo, onde cursou direito e filosofia na USP. Exerceu diversas atividades, estreando na literatura em 1975, com o romance Lavoura Arcaica. Em 1978 publica a novela Um copo de cólera (escrita em 70) . Em 1997 aparece Menina a caminho reunindo contos dos anos 60 e 70. Raduan Nassar deixou de escrever logo depois de sua estréia na literatura.
Curiosidades
O livro se tornou uma obra-prima também nas telas de cinema pelo diretor Luis Fernando Carvalho através de um trabalho primoroso com os atores, que passaram nove semanas em uma fazenda no interior de Minas Gerais, mergulhados nos personagens antes mesmo de se iniciarem as gravações.
Nela, os atores e a equipe técnica aprenderam a trabalhar a terra, ordenhar, fazer pão, bordar e dançar como uma família de origem libanesa. O próprio autor do texto original, Raduan Nassar, esteve presente durante esta etapa.
Marca-livro
O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza, não tem fim; é um pomo exótico que não pode ser repartido, podendo entretanto prover igualmente a todo mundo; onipresente, o tempo está em tudo; existe tempo, por exemplo, nesta mesa antiga: existiu primeiro uma terra propícia, existiu depois uma árvore secular feita de anos sossegados, e existiu finalmente uma prancha nodosa e dura trabalhada pelas mãos de um artesão dia após dia; existe tempo nas cadeiras onde nos sentamos, nos outros móveis da família, nas paredes da nossa casa, na água que bebemos, na terra que fecunda, na semente que germina, nos frutos que colhemos, no pão em cima da mesa, na massa fértil dos nossos corpos, na luz que nos ilumina, nas coisas que passam pela cabeça, no pó que dissemina, assim como em tudo que nos rodeia; rico não é o homem que coleciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele, devasso, que se estende, mãos e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve por nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é.
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